Escala

O que nos separava era uma janela e uma iluminação ardida. De cá, eu o via sempre, o ouvia sempre, e o imaginava tomando café, fazendo compras no supermercado, experimentando uma camiseta, colocando o vinil na vitrola (e qual seria seu preferido), fazendo cara feia para a poncã azeda, e imaginava como seria se trabalhássemos juntos até. E de lá, não sei bem. Ele passava por este lugar às vezes e eu ficava de olho. Era bem o meu tipo: um desengonçado charmoso e artista (com cara de música do Hermeto e blablablá).

Sequer um aceno de boa noite. Nunca me via. E eu, aqui dentro, tentando encontrar alguma pista a fim de saber onde ia e se ia por alguém. Inusitado, um dia me olhou e conversamos. Teríamos assunto para dias e dias inteiros (os interesses poéticos gritavam). E ainda nos entenderíamos além. Mas havia a janela e a luz ardida. Ele tinha mãos zebradas. E eu tinha os ouvidos acessíveis e uma vontade platônica.

Eu procuro um jeito prático de atravessar a janela e me fundir com a luz ardida. Eu sonho com ele, acredita? E no sonho tem a janela, depois da janela, a estrada, depois da estrada, a imensidão de uma cidade e eu sem mapa. Seria perfeito se existissem escadas de escalas. Deve ter alguma no banco traseiro do carro dele. Eu espero ele me acenar novamente pra ver no que dá.

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