Memórias sobre um bebedouro de animais

Quando a gente cultiva uma relação afetiva com as coisas (coisas mesmo...), a gente as vê de uma forma muito pessoal. Mesmo que elas não tenham uma utilidade prática, física, a gente tem essas coisas como recipiente de memórias.

Por exemplo, muito perto de onde moro tem um daqueles bebedouros antigos de cavalos, desativado, claro. Não sei se ainda há outros espalhados pela cidade. Mas era parada obrigatória do charreteiros e seus pobres animais cheios de sede e cansaço. Bom, já aviso que não cultivo a minha boa memória em cima de possíveis sofrimentos de animais; sabemos que antigamente (e ainda há quem prossiga com isso) era muito comum o uso de animais para essas finalidades e sequer passava pela minha cabeça que os cavalos sofriam (eu, criança, achava que, porque alguns deles estavam gordinhos, estavam saudáveis e tudo bem). Mas a prosa é outra.

A minha relação afetiva não é com o bebedouro em si, mas com a imagem de toda a rua; é a paisagem urbana deste pequeno espaço da cidade, no bairro Higienópolis, em Araçatuba, que eu guardo. Eu sempre morei ali nos arredores, mesmo em outro bairro, o São João. E eu levo sobretudo a memória da nova casa do vô e da vó - ali ao ladinho do bebedouro - que eles compraram com muito trabalho, fazendo muitas economias. A memória da novidade, de uma fase diferente da vida, quando eu comecei na entender algumas dores e como funcionam os processos de perdas e desvínculos. 

"Ora, é apenas uma bacia grande de cimento", dizem alguns. "É perigoso, fica no meio da rua e pode causar acidentes", dizem também. Andem devagar, eu respondo. Realmente, quem nunca percorreu estes lados araçatubenses precisa prestar atenção. Há uns dois meses algum desavisado bateu nele com o carro e chegou a entortar e levantar um lado. Dias depois, havia funcionários da Prefeitura no local, com máquinas, pensei que estavam removendo (confesso que fiquei até triste). Mas, não; estavam arrumando.

A gente às vezes bebe em algumas fontes físicas pra manter vivas algumas lembranças. É do ser humano. Quando uma "coisa" permanece no lugar, a memória vai sendo sempre ativada; aquela "coisa" conta uma história. É quase como olhar uma fotografia. Pra quem não tem relação nenhuma com aquilo, o mais prático e correto seria remover ou destruir para não "atrapalhar". Mas, há objetos ou lugares que são uma referência às nossas raízes ou às nossas vivências. Não precisa ter sido charreteiro, nem cavalo, para entender que um simples bebedouro de água para animais pode trazer tanta história.

Quando parte da população de uma cidade se sensibiliza quando um prédio antigo é demolido para dar espaço a um estacionamento ou torre comercial, por exemplo, é nisso tudo que esse pessoal pensa. Lugares e objetos podem carregar a história da cidade, compor a memória coletiva e também a memória de núcleos familiares e de cada indivíduo de forma afetuosa. Memória é referência.









Comentários

Postagens mais visitadas